sábado, 30 de janeiro de 2016

Exercício 3 - Breaking News; logo virá o Filho

Anunciação - Leonardo da Vinci

Por Jânsen Leiros Jr

Revisado e ampliado em 15/04/2024

 

"26 Então, no sexto mês, Deus enviou o anjo Gabriel para Nazaré, uma cidade da Galiléia, 27 a uma virgem prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de Davi. E o nome da virgem era Maria. 28 O anjo chegou ao lugar onde ela estava e ao se aproximar lhe declarou: “Alegra-te, mui agraciada! O Senhor está contigo!” 29 Diante de tais palavras, Maria ficou intrigada, imaginando qual poderia ser o motivo daquele tipo de saudação. 30 Mas o anjo lhe revelou: “Maria, não temas; pois recebeste grande graça da parte de Deus. 31 Eis que engravidarás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus. 32 Ele será Grande, e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, 33 e Ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó, e seu Reino nunca terá fim”. 34 Então, perguntou Maria ao anjo: “Como acontecerá isso, pois jamais tive relação sexual com homem algum?” 35 Então o anjo lhe esclareceu: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. E por esse motivo, o ser que nascerá de ti será chamado Santo, Filho de Deus. 36 Saiba também que Isabel, tua parenta, dará à luz a um filho mesmo em idade avançada, sendo que este já é o sexto mês de gestação para aquela a quem julgavam estéril. 37 Porquanto para Deus não existe nada que lhe seja impossível!” 38 Diante disso, declarou Maria: “Eis aqui a serva do Senhor; que se realize em mim tudo conforme a tua palavra!” Em seguida o anjo partiu."

Lucas 1:26-38 - KJA

Apenas para firmarmos conceito e deixarmos definitivamente claro que Lucas não usará de argumentos para declarar sua teologia, mas o fará sempre baseado em fatos e diálogos, notem que ele segue esse princípio que vimos falando desde o primeiro exercício. Ao destacar que Nazaré é uma cidade da Galiléia[1], ele claramente explicita, ainda que não pretendendo explicar, que o público para quem ele escreveu não conhecia a região. Portanto obviamente não-judeus. Ele usará esse estilo por toda a sua narrativa, e o utilizará também ao escrever Atos dos Apóstolos.

Deus enviou o anjo. Lucas quer deixar claro o envolvimento de Deus na concepção de Jesus. E ele o faz detalhando que o anjo da anunciação foi enviado por Deus. Isso não é um mero detalhe. Da mesma forma que Moisés na narrativa da criação se esforça para envolver Deus em todo exercício criador, retirando da sua narrativa qualquer possibilidade de que o acaso pudesse ter contribuído na formação do universo, ou ainda qualquer outro deus adorado à época, Lucas vai reafirmar, sempre que oportuno, que Deus esteve envolvido em todo o processo de redenção, garantindo que fosse cumprido seu propósito e fim.

Maria era virgem e prometida em casamento. Isso era relevante esclarecer. Primeiro porque rechaçava qualquer possibilidade de que Maria tivesse concebido de outro homem; havia punição de morte tanto à mulher comprometida quanto ao homem que com ela tivesse se deitado nesse estágio de compromisso matrimonial[2]. Na narrativa Maria dirá que não tem como conceber, pois não se relacionou sexualmente com homem algum. Ora, não sendo filho natural de qualquer homem, Jesus seria a descendência da mulher[3], cumprindo-se a profecia contida ainda nos primeiros capítulos de Gênesis. A concepção virginal, porém, tem aspectos teológicos interessantes, que deverão ser detalhados no próximo Exercício, onde Maria terá papel ainda mais relevante. Por hora, sigamos.

Apontar para o fato de Maria ser descendente do rei Davi, é também outra preocupação clara de Lucas. Ele busca estabelecer a legitimidade de Jesus ser o Rei do Judeus, o detentor de uma coroa incorruptível e eterna. Nem mesmo Herodes o Grande poderia impedir que ele a colocasse sobre sua cabeça, ainda que, preocupado com uma eventual disputa pelo trono da Judéia, determinasse a morte das crianças com dois anos de idade ou menos, evento que ficou conhecido como a matanças do inocentes[4], fato retratado ao longo da história por grandes mestres da pintura[5]. O Messias, dizia a profecia, viria da raiz de Davi[6] e como seu filho seria conhecido. Mesmo sendo descendência da mulher, sendo essa mulher descendente de Davi, estava a profecia cumprida.

Notem que Maria se intriga com a chegada do anjo, muito mais pelo que ele diz, do que propriamente com sua aparição. Nem Maria e nem Lucas. Apesar de nascido e criado em uma cultura gentílica, parece que ele também não está preocupado que seus leitores possam se intrigar com a aparição de um anjo, o que sugere que tal fato é completamente plausível e aceito tanto para personagem e escritor, quanto para seus leitores. Isso é ainda mais flagrante, porque Lucas não se ocupa em esclarecer nada a esse respeito. O incômodo gerado na conversa entre Maria e o anjo, girou apenas em torno de sua saudação a ela, e não por qualquer medo ou susto sofrido com sua presença. Esse fato muito se assemelha a aparição dos anjos que foram até Abrãao e a Ló, nos encontros narrados em Gênesis[7], onde nem um nem outro se assustou com a presença de tais seres, tratando-lhes, ainda que com certa deferência, com total naturalidade. Eles não demonstraram qualquer assombro. Mesmo o povo de Sodoma não viu neles nada que lhe intimidasse. Outro assunto para detalharmos em outra oportunidade, não? O faremos oportunamente.

O anúncio da concepção segue. Agora o anjo ocupa-se em persuadir Maria de que, não obstante sua virgindade, a exemplo do milagre operado em sua parente Isabel que concebeu mesmo considerada estéril, a vontade de Deus não seria frustrada. Quando Deus quer nada o impede, pois não há impossíveis para Deus[8]. De certa forma o argumento do anjo cala e apazigua o coração de Maria, pois ela não recalcitra; pelo contrário, acata. Mais do que isso, ela se submete, sem nem mesmo argumentar quanto aos riscos que tal circunstância poderia lhe trazer. Sim, porque a situação seria complicada demais. O que fariam com ela quando descoberta sua gravidez estando ela prometida a José. E José, o que faria de seu direito legítimo de repudia-la? E repudiada, caso escapasse de apedrejamento já que não seria pega em flagrante adultério, como viveria uma vez alijada e à margem da sociedade nazarena? Qual seria o seu futuro e o futuro daquela criança cujo nascimento acabara de ser anunciado?

Alguns estudiosos argumentam que Maria havia se interessado pela promessa feita pelo anjo nos versículos 32 e 33. E por isso então ela só ficou intrigada em como isso poderia acontecer, não tendo ela ainda conhecido qualquer homem. Pode ser. Mas se considerarmos que o contra-argumento do anjo aponta para a fé e não para recompensas pessoais, e que ele antecipa o que se passou com Isabel apesar de ser considerada estéril, Maria se preocupou sim com os desdobramentos do que foi anunciado, dadas as suas circunstâncias; virgem e prometida. Porém jamais descreu no anúncio que lhe foi feito. Ela sabia o que poderia acontecer. Havia efetivo risco de vida. O anjo se apressou em comparar a condição anterior de humilhação de Isabel, deixando evidente que Deus tão pouco permitiria a sua humilhação; para Deus não há impossíveis. A submissão de Maria à vontade de Deus, portanto, vem de sua confiança no cuidado de Deus e não de seu interesse pessoal. A declaração do anjo nos versículos 32 e 33, contudo, lhe causarão dificuldades mais adiante, já perto, durante e após a morte de Jesus.

Lucas termina essa seção de sua narrativa com a disponibilidade incondicional de Maria em realizar a vontade de Deus. Por fé ela se coloca pronta a passar por tudo o que tiver que passar, para que Deus realizasse seu propósito. A exemplo de Zacarias e Isabel, mais um personagem envolvido no início da narrativa de Lucas se dispôs a esperar contra a esperança. Creu no inacreditável, e a agiu com a convicção de que a promessa de Deus jamais deixará de se cumprir. Que os nossos corações sejam sempre firmes, em confiança e coragem, esperando confiada e pacientemente o cumprimento das promessas do Senhor. Eis-nos aqui.



[1] A Galileia era uma região situada no nordeste de Israel. Era uma província mais ampla que incluía diversas cidades e vilarejos, além de uma área rural. Nazaré era uma pequena cidade que ficava na região montanhosa daquela província.

A economia tanto em Nazaré quanto na Galileia inteira, era predominantemente agrícola, com muitos dos seus habitantes envolvidos em atividades como agricultura, criação de gado e pesca junto ao Mar da Galileia, bem como o cultivo de oliveiras, vinhas e cereais.

Historicamente, essas regiões não pontuavam no cenário político-religioso. Nazaré era uma cidade relativamente pequena e pouco relevante, enquanto a Galileia era vista como uma região periférica do território judaico, com uma população diversificada de judeus e gentios.

No entanto, tanto Nazaré quanto a Galileia ganharam importância histórico-religiosa com o surgimento do cristianismo. Nazaré tornou-se conhecida como o local de origem de Jesus Cristo e sua família, enquanto a Galileia foi o cenário onde Jesus passou a maior parte de seu ministério público, realizando milagres, ensinando e reunindo seguidores. Essa região foi fundamental no desenvolvimento inicial do cristianismo e na propagação de sua mensagem.

 

[2] Na lei judaica, a punição para uma mulher prometida em casamento que se deitasse com outro homem era a pena de morte por apedrejamento, conforme prescrito em Deuteronômio 22:23-24.

Para o homem que se deitasse com uma mulher prometida em casamento, a punição também era a pena de morte por apedrejamento, conforme estabelecido no mesmo trecho da lei. A igualdade na punição reflete a seriedade com que o adultério era encarado na sociedade judaica e a proteção do casamento e da instituição da família.

[3]  Gênesis 3:15

[4]  Mateus 2:16-18

[5] Um dos artistas famosos que retrataram o "Massacre dos Inocentes" em pintura foi o pintor renascentista italiano Tintoretto, cuja obra "O Massacre dos Inocentes" é uma das representações mais conhecidas desse evento bíblico. Outro artista famoso que abordou esse tema foi o pintor flamengo Pieter Bruegel, o Velho, em sua obra "Massacre dos Inocentes", que é considerada uma das obras-primas do Renascimento flamengo.

[6] Alguns textos bíblicos que afirmam que o Messias viria da descendência de Davi incluem:

1.       2 Samuel 7:12-13 - Neste texto, Deus promete a Davi que estabelecerá um descendente dele para reinar para sempre.

2.       Isaías 11:1 - Este versículo profetiza que um rebento sairá do tronco de Jessé, pai de Davi, e um renovo brotará das suas raízes.

3.       Jeremias 23:5-6 - Aqui, o profeta Jeremias prediz que um descendente justo surgirá de Davi para reinar como rei sábio e justo.

4.       Mateus 1:1 - O Evangelho de Mateus inicia com a genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, mostrando sua ligação com a linhagem de Davi.

[7] Gênesis 18:1-33; 19:1-29

[8] Jeremias 32:17

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Exercício 2 - Do silêncio a voz. Do improvável a graça

Por Jânsen Leiros Jr

Revisado e ampliado em 08/04/2024



"5 Na época de Herodes, rei da Judéia, havia um certo sacerdote chamado Zacarias, que fazia parte do grupo sacerdotal de Abias. E Isabel, sua esposa, também era uma das descendentes de Arão. 6 Os dois andavam em justiça aos olhos de Deus e obedeciam de forma irrepreensível a todos os mandamentos e doutrinas do Senhor. 7 Contudo, eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril, e ambos eram avançados em idade.

8 Em certa ocasião, quando seu grupo estava de serviço, Zacarias ministrava como sacerdote diante de Deus. 9 Ele foi escolhido por sorteio, de acordo com a tradição do sacerdócio, para ter acesso ao altar do Santo dos Santos e ali oferecer a queima do incenso. 10 E, chegando o momento da oferta do incenso, uma multidão de pessoas estava orando do lado de fora. 11 Foi então que um anjo do Senhor apareceu a Zacarias, à direita do altar do incenso. 12 Assim que Zacarias o viu, ficou perplexo e um grande temor o dominou completamente. 13 Entretanto, o anjo lhe assegurou: “Não tenhas medo, Zacarias; eis que a tua súplica foi ouvida. Isabel, tua esposa, te dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de João. 14 Ele te será motivo de grande felicidade e regozijo. E muitos se alegrarão com o seu nascimento. 15 Pois ele será grande aos olhos do Senhor, jamais beberá vinho nem qualquer outra bebida fermentada, e será pleno do Espírito Santo desde antes do seu nascimento. 16 E conduzirá muitos dos filhos de Israel à conversão ao Senhor, seu Deus. 17 Ele avançará na presença do Senhor, no mesmo espírito e poder de Elias, com o propósito de fazer voltar o coração dos pais a seus filhos e os desobedientes à sabedoria dos justos, deixando um povo preparado para o Senhor”.

18 Então, Zacarias indagou do anjo: “Como poderei certificar-me disso? Pois já sou idoso, e minha esposa igualmente de idade avançada”. 19 Ao que o anjo lhe replicou: “Sou Gabriel, aquele que está permanentemente na presença de Deus e fui encarregado de vir para falar e transmitir-te estas boas notícias. 20 Porém, eis que permanecerás em silêncio, pois não conseguirás falar até o dia em que venha a ocorrer tudo quanto te revelei, porquanto não acreditaste nas minhas palavras, as quais, no seu devido tempo, se cumprirão”.

21 Enquanto isso, o povo estava aguardando Zacarias e preocupava-se com o fato de que demorasse tanto no santuário do Senhor. 22 Mas, ao sair, nenhuma palavra conseguia pronunciar; as pessoas perceberam que ele tivera uma visão no santuário. Zacarias tentava comunicar-se através de sinais, permanecendo todavia mudo. 23  Ao completar seus dias dedicados ao serviço, ele regressou para casa.

24 E, passado esse tempo, Isabel, sua esposa, engravidou, mas durante cinco meses ocultou-se das pessoas não saindo de casa. 25 E ela dizia a si mesma: “Isto é dádiva do Senhor para mim! Eis que seus olhos me contemplaram, para retirar de sobre mim a grande humilhação que sentia diante de todos” "
Lucas 1:5-25 - KJA

Nos primeiros versículos do seu evangelho, Lucas prometeu fazer um relato detalhado sobre os acontecimentos da vida de Jesus. E ele logo se encarrega de cumprir tal promessa, pois com considerável detalhamento, já que sua narrativa se baseia em informações coletadas, ele declara fatos precedentes ao próprio nascimento do Senhor.

Numa primeira análise parece estranho que ele tenha se ocupado em incluir o nascimento de João Batista, como um fato relevante na trajetória de Jesus. Mais estranho ainda, é acrescentar um relato, ainda que breve, sobre o que acontecera antes mesmo de sua concepção. Porém, como afirmamos no exercício anterior, Lucas parece não relatar absolutamente nada por acaso. Muito pelo contrário. Por todo o texto sua narrativa aponta para temas claros, pretendendo assim, ensinar com fatos e diálogos sem necessariamente argumentar nada. Ele repete esse estilo no livro de Atos dos Apóstolos, onde a história contada se encarrega de expor seus princípios e percepções[1].

Note que ele começa estabelecendo um paralelo entre Herodes e Zacarias, ainda que pareça apenas situar um momento histórico. Herodes, rei da Judéia[2], Herodes o Grande como ficara conhecido, foi um rei que forjou seu trono à força. Ele não fora colocado no trono apenas, mas o conquistou à espada por volta de 37 a.C., após ter sido permitido-lhe, pelo próprio império romano, constituir um exército para seu projeto de poder. Já Zacarias, um sacerdote avançado em anos, sem filhos e sem muitas esperanças, cujos dias passava no ofício sacerdotal, era justo e temente a Deus, não obstante o infortúnio de não ter gerado descendência. De um lado poder e orgulho; do outro fraqueza e suplício. E Deus encaminha seu Reino a partir do desvalido e suplicante. Um sinal não compreendido pela elite religiosa da época.

Sim, porque o que Lucas elabora aqui é um excelente pano de fundo para uma questão espiritual. Ainda que forte e temido, o poder de Herodes é ilegítimo. Não tanto pela forma como o conquistou, mas porque o reino que Deus estava para estabelecer, não viria pela força da espada, mas da ação do seu Espírito que traria a existência o que não existia[3]. Trazendo vida de onde não se esperava, resgatando um povo cujas esperanças por liberdade já esmaeciam[4].

Ainda que motivo de súplicas, o desejo e a fé de Zacarias claudicavam. Tanto que, quando o anjo lhe apareceu anunciando que seria pai, ele não conseguiu crer no que lhe foi dito. Sou avançado em anos, disse ele ao anjo, demonstrando entender que suas circunstâncias desfavoráveis poderiam ser um impedimento para o cumprimento do que lhe fora anunciado. O anjo então o deixa mudo até o nascimento do filho, em oposição à sua desconfiança. Em silêncio teve que aguardar o cumprimento da promessa.

E aqui parece saltar-nos outro ensinamento. A vontade de Deus não se frustra apesar de nossa eventual desconfiança[5]. Mas a exemplo de Zacarias, ao duvidarmos do cuidado de Deus, perdemos a alegria de anunciar com os próprios lábios o favor de Deus em nossa vida, deixando passar a oportunidade de testemunhar por fé o seu resgate. Não é assim que acontece quando por fraqueza de fé, nos permitimos emudecer pela ansiedade e o medo da frustração?

Assim como Isabel, Israel vivia um momento de profunda infertilidade. A nação amargava mais um domínio, agora romano[6]. Havia grande desilusão. Há tempos não havia qualquer movimento que lhes apontasse para o surgimento de um messias que lhes restaurasse a nação. Viviam um momento de grande humilhação, assim como humilhante era para Isabel não conceber de Zacarias para lhe suscitar descendência.  Não ser capaz de gerar vida era humilhante para ela. Não ser capaz de cuidar da própria vida nacional, também era humilhante para o povo judeu[7]. Por isso Isabel considera o aviso de que seria mãe uma dádiva, e como anúncio de sua redenção.

O interessante nesse caso, é que mais tarde o filho daquele que emudeceu por desacreditar na boa nova, se tornará exatamente a voz ouvida no deserto, anunciando a vinda do reino de Deus. O filho daquele que tivera a voz silenciada por descrer, cheio do Espírito Santo, anunciará por fé e ousadia, que o Senhor está para resgatar a humanidade de seus pecados[8]. Arrependei-vos!

Ora, na introdução de seu evangelho Lucas deixa claro que Deus realiza sua vontade apesar de toda e qualquer circunstância desfavorável. E mais. É exatamente num ambiente de total improbabilidade, onde tudo leva a crer no contrário, que o favor de Deus se manifesta em bondade e misericórdia. É exatamente quando somos fracos que nos tornamos fortes[9]. É esperando contra a esperança[10], que aguardamos a ação de Deus em nosso socorro e resgate.

Que nossa fé não se baseie em garantias oferecidas pela espada e o poder como o de Herodes, ou por qualquer outra forma de empoderamento humano, quer seja riqueza, posição social ou favores políticos. Antes, que sejamos confiantes no cuidado e na providência divina que nos redime sempre, ainda que da mais imprópria condição. Agindo Deus, quem impedirá?[11]



[1] Ao adotar a estratégia de narrar os eventos como forma de transmitir ensinamentos teológicos, Lucas segue uma abordagem narrativa que se alinha com o estilo literário dos evangelhos e com o contexto da época em que foram escritos. Aqui estão algumas razões pelas quais ele pode ter optado por essa abordagem:

1.       Tradição Literária: Os evangelhos eram uma forma de literatura narrativa comum na cultura da época, destinada a transmitir tradições e ensinamentos de maneira acessível e memorável.

2.       Auditoria Primária: Muitos dos primeiros leitores dos evangelhos provavelmente não eram alfabetizados, então a tradição oral desempenhava um papel importante na transmissão das histórias. Narrativas vívidas e memoráveis seriam mais eficazes para serem compartilhadas verbalmente.

3.       Contexto Cultural: Na tradição judaica, a narrativa era frequentemente usada como meio de ensino. As parábolas de Jesus são exemplos claros desse método de ensino, que se baseia em histórias do cotidiano para transmitir verdades mais profundas.

4.       Credibilidade e Testemunho: Ao narrar eventos como testemunha ocular ou baseando-se em testemunhas oculares, Lucas dá credibilidade aos relatos, especialmente quando se trata de eventos históricos cruciais, como a vida e os ensinamentos de Jesus e os primeiros dias da igreja primitiva.

5.       Impacto Emocional: As histórias têm o poder de evocar emoções e criar conexões pessoais com os personagens e os ensinamentos apresentados. Isso pode levar a uma compreensão mais profunda e duradoura do significado por trás dos eventos narrados.

Portanto, Lucas pode ter escolhido essa abordagem narrativa para alcançar efetivamente seu público-alvo, transmitindo os ensinamentos teológicos de uma maneira que ressoasse com sua audiência e fosse facilmente compreendida e lembrada.

 

[2] Herodes, o Grande, foi um rei judeu que governou a região da Judeia sob o domínio romano durante o período do primeiro século a.C. Ele é conhecido por suas habilidades políticas, sua construção de grandes obras, como o Templo de Jerusalém, e também por seu governo autoritário e muitas vezes cruel. Herodes foi nomeado rei da Judeia pelos romanos em torno de 37 a.C. e reinou até sua morte em 4 a.C. Ele é mencionado em vários relatos do Novo Testamento, incluindo o nascimento de Jesus, onde sua busca pelo Messias recém-nascido levou ao massacre dos inocentes.

[3] Romanos 4:17; Nesse versículo, Paulo está falando sobre a fé de Abraão e como Deus, em quem Abraão creu, tem o poder de dar vida aos mortos e chamar à existência coisas que não existem. Isso ressalta o poder criativo de Deus e Sua capacidade de realizar o impossível.

[4] Isaías 9:2

[5] Jó 42:2

[6] Entre o domínio persa e o romano, houve o domínio grego sobre Israel. Este período é conhecido como o Período Helenístico, que começou com as conquistas de Alexandre, o Grande, por volta do século IV a.C. Após a morte de Alexandre, seu vasto império foi dividido entre seus generais, e a região de Israel acabou sob o controle dos governantes gregos ptolomaicos no sul e selêucidas no norte. Este período foi marcado por influências culturais gregas e pelo conflito entre as dinastias ptolomaica e selêucida pelo controle da região. O domínio selêucida foi particularmente opressivo e desencadeou uma revolta judaica liderada pelos Macabeus, que eventualmente levou à independência temporária de Israel. No entanto, a independência foi novamente perdida com a ascensão do Império Romano na região.

[7] Além das cobranças de impostos que causavam empobrecimento, o domínio romano causava um profundo sentimento de humilhação nos judeus por diversas combinações de fatores, como:

1.       Perda da autonomia política e religiosa: Os romanos impuseram seu governo sobre os judeus, privando-os da autonomia política que desfrutavam anteriormente. Além disso, os líderes religiosos judeus tinham que cooperar com as autoridades romanas, o que muitas vezes gerava conflitos de interesses e interferência nas práticas religiosas.

2.       Presença militar estrangeira: A presença de soldados romanos em solo judeu era constante e muitas vezes opressiva. Isso era uma lembrança diária da subjugação do povo judeu pelo Império Romano.

3.       Restrições culturais e religiosas: Os romanos impuseram várias restrições às práticas culturais e religiosas dos judeus, o que os fazia sentir-se subjugados e desrespeitados em sua própria terra. Por exemplo, a exigência de prestar homenagem ao imperador romano como uma divindade era profundamente ofensiva para os judeus, que tinham uma forte tradição monoteísta.

4.       Desprezo e discriminação: Os romanos muitas vezes tratavam os judeus com desprezo e discriminação, considerando-os inferiores. Isso se manifestava em vários aspectos da vida cotidiana, como acesso restrito a certas áreas da cidade, ocupações desfavoráveis e tratamento desigual perante a lei.

 

[8] João 1:29

[9] 2 Coríntios 12:9-10

[10] Romanos 4:18

[11]  Isaías 43:13

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Exercício 1 - Por que, Lucas?


Por Jânsen Leiros Jr


"1 Tendo em vista que muitos já se empenharam em elaborar uma narrativa histórica sobre os eventos que se cumpriram entre nós, 2 conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares dos fatos e servos dedicados à Palavra, 3 eu, pessoalmente, investiguei tudo em minúcias, a partir da origem e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo. 4 E isso, para que tenhas plena certeza das verdades que a ti foram ministradas. "
Lucas 1:1-4 - KJA

Muitos me perguntam por que resolvi iniciar os Exercícios Espirituais pelo Evangelho de Lucas, e não pelo Evangelho de Mateus, que é o primeiro dos evangelhos posicionados no Novo Testamento, ou mesmo por qualquer outro livro do compêndio bíblico. E sempre levo um tempo em silêncio, buscando uma resposta que se pretenda equilibrada entre as razões teológicas e as motivações meramente pessoais. Talvez um instinto agudo de querer parecer intelectual. Nunca consegui. Porque minha escolha deveu-se primordialmente a uma predileção pessoal e prazerosa. E essa é a mais pura e simples verdade.

Sempre achei a narrativa de Lucas mais interessante, mais humana e mais rica em detalhes. E talvez por isso a tenha lido mais vezes que as demais. E considerando que nada é tão improdutivo quanto realizar uma tarefa contínua, que não nos traga um mínimo de prazer e alegria, optei por iniciarmos os Exercícios exatamente em Lucas. Misto de interesse pessoal e prazer.

Sim. Além das considerações teológicas e históricas que veremos adiante, é importante destacar o prazer e a satisfação que podemos obter ao nos envolvermos com a leitura do Evangelho de Lucas. Segundo Spinoza[1], o prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que se traduz em uma maior dedicação e empenho nos estudos espirituais. Dessa forma, a escolha do Evangelho de Lucas para nossos exercícios não se baseia apenas em critérios teológicos, mas também na experiência prazerosa e enriquecedora que ele proporciona.

Razões teológicas para iniciarmos por Lucas

É claro que, por força de ofício, ainda que de ofício os Exercícios nada tenham, há sim razões teológicas que nos orientam a iniciar nossas atividades por Lucas. E tentarei organizá-las a seguir, de modo que nos deixe mais confortáveis e interessados pela escolha.

Abordagem detalhada e rica em narrativa

O Evangelho de Lucas é conhecido por sua narrativa detalhada e rica em pormenores sobre a vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus. Isso proporciona uma visão mais ampla e profunda dos ensinamentos e feitos do Senhor, permitindo uma compreensão mais completa de sua mensagem e propósito.

Ênfase na compaixão e na inclusão

Lucas retrata Jesus como alguém compassivo e preocupado com os marginalizados, os pobres, os doentes e os pecadores. Ele destaca as parábolas de Jesus que enfatizam a misericórdia, o perdão e a inclusão, o que é relevante para quem busca compreender e praticar os ensinamentos de Cristo em sua vida cotidiana, demonstrando amor e cuidado pelo próximo. Ao apresentar Jesus como revelador de um Deus preocupado com os desfavorecidos das condições de uma vida digna, Lucas ressalta que a indignidade humana não se restringe à condição financeira, mas está principalmente relacionada ao afastamento de Deus.

Teologia da salvação universal

Lucas também enfatiza a mensagem de que a salvação é para todos, independentemente de sua origem étnica, social ou religiosa. Ele destaca o ministério de Jesus entre os gentios e apresenta várias histórias de não-judeus que encontram graça e salvação em Jesus. Isso é significativo quando exploramos a amplitude da graça e do amor de Deus pela humanidade.

Ênfase na ação do Espírito Santo:

Lucas enfatiza a obra do Espírito Santo tanto no ministério de Jesus quanto na vida da igreja primitiva. Ele registra o papel do Espírito Santo no nascimento de Jesus, em seu ministério terreno e na capacitação dos discípulos para proclamar o evangelho após a ascensão de Jesus. Isso é relevante para uma compreensão mais profunda da atuação do Espírito Santo em nossas vidas e em nossos dias. Lucas apresenta Jesus como o Homem Perfeito, interessado em salvar o que se havia perdido. Todo o evangelho trata dessa humanidade plena e perfeita, sustentada pelo Espírito de Deus, que capacitou Jesus a realizar milagres e prodígios, e a confrontar os religiosos conformistas e aproveitadores de sua época.

Conexão com o livro de Atos dos Apóstolos:

Lucas é também o autor do livro de Atos dos Apóstolos, formando uma obra coesa que narra a história da vida e do ministério de Jesus, seguida pela história da igreja do primeiro século e da propagação do evangelho após a ascensão de Jesus. Exercitar-se em Lucas pode preparar o caminho para uma compreensão mais profunda do livro de Atos e vice-versa, fortalecendo o entendimento da ação trina de Deus em Cristo, na Igreja e através dela. Essa característica é particularmente interessante, pois o evangelho de Lucas parece ser o primeiro volume de uma obra de dois volumes, sendo Atos dos Apóstolos o segundo livro de um mesmo trabalho. Tanto que Atos inicia com uma espécie de resumo do final do Evangelho de Lucas, como que introduzindo a história seguinte com as últimas cenas da narrativa anterior, estabelecendo um conjunto coerente que aponta ainda mais claramente as temáticas doutrinárias passadas por Lucas ao longo de seu evangelho.

Além das razões teológicas que justificam a escolha pelo Evangelho de Lucas como texto inicial para nossos exercícios bíblicos, seu estilo literário também é um fator importante a ser considerado. Lucas adota uma exposição temática dos fatos e diálogos narrados, concentrando ideias e princípios doutrinários, refletindo a teologia oral que já estava em construção à época em que escreveu seu evangelho. Vale ressaltar que Lucas foi companheiro de Paulo em suas viagens missionárias, o que possivelmente influenciou sua abordagem teológica. Assim como Marcos, que foi influenciado por Pedro, Lucas parece ter sido influenciado pela visão teológica de Paulo, tanto em seu evangelho quanto no livro de Atos dos Apóstolos.

Quando o Evangelho de Lucas foi escrito?

Embora a data precisa da redação do Evangelho de Lucas não seja conhecida, estima-se que tenha sido entre 60 e 63 d.C. Esta estimativa se baseia na ausência de referências à destruição do templo ou à morte de Paulo no texto, eventos que provavelmente teriam sido mencionados se já tivessem ocorrido. No entanto, mais do que a data exata da escrita, o que realmente importa para o nosso estudo é a riqueza teológica e narrativa presente no Evangelho de Lucas.

Que os nossos Exercícios Espirituais, a partir de hoje, nos proporcionem musculatura espiritual capaz de nos forjar maturidade na alma, para que prossigamos em crescer na graça e no conhecimento de Deus.



[1] Baruch Spinoza, filósofo holandês do século XVII, desenvolveu a ideia de que o prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que ele chamou de "potência de agir" em sua obra "Ética". Segundo Spinoza, quando experimentamos prazer em algo, isso nos leva a buscar mais dessa experiência, aumentando assim nossa capacidade de agir sobre o mundo. Em outras palavras, o prazer nos impulsiona a agir de maneira mais eficaz e determinada, contribuindo para nossa realização e felicidade.